Quem é Pombagira?


E aí, vamos trocar uma ideia séria? Se você chegou até aqui, provavelmente já ouviu um monte de coisa sobre Pombagira. Talvez tenha escutado aquela gargalhada forte que ecoa no terreiro e ficou se perguntando: "que força é essa?". Ou, quem sabe, veio com a cabeça cheia de histórias que pintam ela como uma figura perigosa, a mulher da rua, a que faz "amarração". Esquece tudo isso por um instante. Respira fundo, abre a mente e o coração, porque a gente vai conversar de verdade, sem filtro e sem papas na língua, sobre uma das entidades mais incompreendidas e, sem a menor dúvida, uma das mais poderosas e libertadoras da nossa Umbanda.
A primeira coisa que você precisa entender é que aquela gargalhada não é deboche. É um mantra. É um ponto cantado sem palavras. É uma vibração tão potente que limpa o ambiente, quebra feitiço, desfaz energia ruim e afasta espírito zombeteiro. É a risada de quem já viu o fundo do poço e voltou, de quem conhece a dor e a delícia de ser quem é, sem pedir licença. A gargalhada de Pombagira é um ato de pura liberdade.
A Umbanda é um grande pronto-socorro espiritual, um lugar que acolhe a todos, sem perguntar de onde vieram ou o que fizeram. E nesse pronto-socorro, Pombagira é aquela trabalhadora da linha de frente, a especialista em emergências da alma. Ela lida com o que há de mais profundo e, muitas vezes, mais dolorido em nós: nossos desejos, nossas paixões, nossas frustrações e nossos medos.
Então, a polêmica toda em volta dela não vem da Umbanda, não. Vem de fora. Vem de uma sociedade que, por séculos, tentou calar a mulher, reprimir a sexualidade feminina e colocar tudo que é relacionado ao desejo e à liberdade em uma caixinha com o rótulo de "pecado". A Umbanda, na sua sabedoria divina, fez o contrário: pegou essa figura da mulher livre, que a sociedade tentou marginalizar, e a colocou num altar. Deu a ela o título de Guardiã, de Mestra, de Senhora. O medo que muitos sentem de Pombagira é, na verdade, o medo da mulher que não se curva, da força feminina que não pode ser controlada. E é sobre essa força que a gente vai falar agora.
A Origem da Força – De Onde Vem a Moça?
Pra entender quem é Pombagira, a gente precisa voltar um pouco no tempo e no espaço. A figura dela, como a gente conhece hoje na Umbanda, tem uma raiz que vem lá dos cultos de Angola, na África, em uma entidade chamada Bombogira. Quando os povos africanos foram trazidos à força para o Brasil, eles trouxeram consigo suas crenças, seus Orixás e suas entidades. Aqui, nesse caldeirão cultural que é o nosso país, Bombogira foi assimilada e, mais do que isso, foi ressignificada.
Pensa no contexto da época: uma sociedade brutalmente patriarcal, onde a mulher era vista como propriedade, reprimida em seus desejos e silenciada em suas vontades. De repente, em um ritual religioso, se manifesta uma entidade espiritual feminina que é o oposto de tudo isso. Uma entidade que fala o que pensa, que é dona de si, que exala sensualidade e poder. Pombagira não foi apenas uma adaptação de uma entidade africana; ela foi uma resposta espiritual necessária a uma dor social. Ela se tornou a voz das mulheres que não podiam falar, o desejo das que eram forçadas a reprimir, a liberdade das que viviam aprisionadas.
É por isso que o arquétipo dela é tão forte. Ela se apresentou como a "moça da rua", a mulher livre, "liberal e liberada", "exibicionista e provocante", "sensual e libidinosa", quebrando todas as convenções que ensinavam que os espíritos tinham que ser sérios e comportados. Ela não negou o rótulo que a sociedade tentou lhe impor; pelo contrário, ela o abraçou e o transformou em um símbolo de poder.
E aquela história de que ela é "mulher de sete Exus"? Esquece a interpretação literal. Isso é pura simbologia de poder e independência. Em uma linguagem popular, a mensagem era clara e direta: uma única Pombagira tem a força e a capacidade de dar conta do trabalho de sete Exus. Ela não é "de" Exu, ela caminha ao lado dele, como sua igual, sua parceira na execução da Lei Divina. Ela não precisa de um homem para validá-la; ela é a sua própria força. A origem de Pombagira, portanto, não está só na África, mas na alma do povo brasileiro, que precisava de uma representação sagrada para a força, a resiliência e a liberdade do feminino.
O Dom do Desejo – O Que Pombagira Realmente Faz?
Agora vamos ao ponto central, o coração do mistério: qual é o trabalho de Pombagira? Se a gente pudesse resumir em uma palavra, seria: desejo. Mas não o desejo banalizado, da paixão carnal pura e simples. Estamos falando do Desejo como força motriz da vida, como um mistério divino.
Pensa comigo: pra você levantar da cama de manhã, você precisa do desejo de viver o dia. Pra conseguir um emprego, você primeiro precisa do desejo de trabalhar. Pra se curar de uma doença, você precisa do desejo de ficar são. O desejo é a faísca que inicia todo movimento, toda ação, toda criação no universo. Sem desejo, a vida para. E Pombagira é a Senhora desse mistério. Ela é a divindade que rege essa força fundamental.
Seu trabalho é atuar diretamente nesse campo. Ela estimula, desestimula ou neutraliza os desejos dos seres, sempre de acordo com a Lei Maior e o merecimento de cada um. Ela não é uma "gênia da lâmpada" que realiza pedidos egoístas. Ela é uma agente da Justiça Divina. Se o seu desejo é construtivo e alinhado com a sua evolução, ela vai abrir seus caminhos pra que você tenha a força de realizá-lo. Se o seu desejo é destrutivo ou vai te prejudicar, ela vai atuar para neutralizar essa energia
É por isso que ela é descrita como uma "ótima psicóloga" do astral. A consulta com uma Pombagira é uma terapia de choque para a alma. Ela vai direto na ferida, sem anestesia. Ela lida com nossos recalques, nossas frustrações, nossas mágoas e tristezas mais profundas. Ela nos força a olhar para as nossas sombras, para aquilo que a gente esconde até de nós mesmos. E é nesse confronto que a cura acontece. Ela nos ajuda a entender a origem dos nossos bloqueios e nos dá a força para nos libertarmos deles
Essa atuação nos coloca diante de uma das maiores verdades da Umbanda: a polaridade entre Exu e Pombagira. Se Pombagira é o Desejo, Exu é o Vigor, a força vital que executa a ação. Um não funciona sem o outro. O Desejo sem o Vigor é um sonho que nunca sai do papel. O Vigor sem o Desejo é força bruta sem direção, sem propósito. A vida, na visão da Umbanda, é essa dança constante entre o querer fazer (Pombagira) e a força para fazer (Exu). Isso eleva os dois de simples "entidades da esquerda" para princípios cósmicos, fundamentais para a mecânica da existência e da evolução. O trabalho deles é muito mais profundo do que simplesmente "desfazer feitiço"; é atuar no próprio motor da vid
Laroyê, Pombagira! Desfazendo Mitos e Mentiras
Por ser tão poderosa e lidar com temas que são tabu, Pombagira acabou virando alvo de um monte de mentiras e preconceitos. Então, vamos colocar os pingos nos "is" e separar o joio do trigo, o mito do fato
Mito 1: Pombagira é o Diabo ou uma entidade do mal.
Fato: Essa é talvez a mentira mais absurda e desrespeitosa. Primeiro, a Umbanda é uma religião monoteísta. A gente acredita em um único Deus, que chamamos de Olorum. Todos os Orixás e entidades são manifestações desse poder divino, trabalhadores da Lei Maior. A associação de Pombagira (e de Exu) com a figura do diabo cristão é fruto de puro preconceito e racismo religioso, uma tentativa de demonizar as crenças de matriz africana que começou lá na época da escravidão e, infelizmente, continua até hoje. Pombagira não é do mal. Ela combate o mal. Ela é uma guardiã, uma aplicadora da Justiça Divina
Mito 2: Toda Pombagira foi prostituta em vida.
Fato: Aqui a gente precisa entender a diferença entre arquétipo e espírito. O arquétipo da "mulher da rua", da mulher livre e dona de si, é um símbolo de poder, de quebra de tabus, de liberdade. Ele representa a força feminina que não se encaixa nos moldes impostos pela sociedade. A linha de trabalho de Pombagira é uma legião com milhões de espíritos. É claro que, entre esses milhões, pode haver espíritos que tiveram essa vivência em alguma de suas encarnações. Mas dizer que todas foram isso é um reducionismo ignorante. O que une esses espíritos não é uma profissão do passado, mas a afinidade com esse arquétipo de força, coragem e independência.
Mito 3: Pombagira faz "amarração" e trabalhos para o mal.
Fato: Não, não e não. Uma Pombagira de Lei, uma verdadeira trabalhadora da Umbanda, é uma agente da Justiça Divina. E a Lei Divina respeita uma coisa acima de tudo: o livre-arbítrio. Fazer uma "amarração" é violar o livre-arbítrio de outra pessoa, é forçar um sentimento que não existe, é criar uma prisão espiritual. Uma entidade de Luz jamais faria isso. Trabalhos que visam prejudicar, amarrar ou forçar a vontade de alguém não são feitos por Pombagiras de Lei, mas por espíritos desequilibrados e sofredores (os kiumbas), que muitas vezes se passam por elas para enganar os incautos. Um terreiro sério, um médium de verdade, jamais se prestará a esse tipo de serviço, que vai contra o princípio fundamental da Umbanda: a caridade. Pombagira desfaz amarrações, ela não as faz. Ela liberta, ela não aprisiona.
A Presença Dela – Como é a Gira de Pombagira?
Entrar em um terreiro durante uma gira de Pombagira é uma experiência única. A energia muda, fica mais densa, mas de um jeito bom. É uma energia vibrante, cheia de alegria, força e um magnetismo contagiante. E cada elemento que ela usa em seu trabalho tem um porquê, uma função magística. Não é vício, é ferramenta.
Champanhe: A bebida borbulhante não é para embriaguez. É um néctar sagrado. As bolhas que sobem simbolizam a elevação dos nossos pedidos ao astral superior. Ao mesmo tempo, a energia desse elemento tem o poder de diluir e neutralizar miasmas e energias negativas pesadas. É um elemento de celebração e limpeza.
Cigarrilhas e Cigarros: A fumaça é uma das ferramentas de limpeza mais antigas da espiritualidade. A Pombagira não traga, ela "pita". Ela puxa a fumaça e a sopra sobre o consulente ou no ambiente, usando-a como um defumador pessoal, que desagrega larvas astrais e limpa o campo energético.
Rosas Vermelhas: A rosa é o símbolo máximo do amor, da paixão e do desejo. Sua cor vermelha vibra a força, a vitalidade, a paixão pela vida. É um elemento que Pombagira usa para trabalhar o campo afetivo e a autoestima das pessoas.
Perfumes, Joias e Cores Vibrantes: Tudo isso representa a valorização do feminino, a beleza, o encanto, o poder de atração. São ferramentas para trabalhar a autoestima, para lembrar a consulente (ou o consulente) de que ela precisa se amar, se cuidar, se valorizar para ser feliz.
A Gargalhada: Como já falamos, é um mantra de poder. É uma onda sonora que quebra demandas, afasta obsessores e eleva a vibração do ambiente. É a afirmação de sua força e alegria.
O que a gente vê aqui é um princípio fundamental da magia de Umbanda: a ressignificação. Pombagira pega elementos do mundo profano, que poderiam ser associados à vaidade ou ao vício, e os transforma em instrumentos sagrados. A lição é profunda: o poder não está no objeto, mas na intenção e na consagração que o ativa. Ela nos ensina que podemos pegar os elementos da nossa própria vida e sacralizá-los, transformando o que nos puxa para baixo em ferramentas para nossa elevação.
Uma Legião de Mulheres Fortes – As Muitas Pombagiras
É muito importante entender que não existe "a" Pombagira. Existe uma linha de trabalho, uma legião de incontáveis espíritos que atuam sob essa bandeira. Cada uma dessas entidades é um espírito individual, com sua própria história, sabedoria e campo de atuação. O nome simbólico que elas usam nos ajuda a entender sua vibração e especialidade.
Vamos conhecer algumas das mais famosas, só pra você ter uma ideia da diversidade:
Maria Padilha: Frequentemente associada à nobreza, ao poder e a uma grande sabedoria para lidar com as complexidades do amor e dos relacionamentos. É uma grande estrategista.
Maria Molambo / Maria Farrapo: Seu nome pode parecer pejorativo, mas seu poder é imenso. Ela é a mestra da transformação. Trabalha com quem está no fundo do poço, na "sarjeta" da vida, e tem a força de transformar o lixo em luxo, ajudando as pessoas a se reerguerem com dignidade.
Pombagira das Sete Saias: O número sete na Umbanda é sagrado. As sete saias representam os sete caminhos, as sete vibrações dos Orixás, os sete sentidos da vida. Ela é uma entidade versátil, que tem a capacidade de atuar em múltiplas áreas da vida de uma pessoa, desatando nós em todos os sentidos.
Pombagira Cigana: Traz toda a energia e a magia do povo cigano. É ligada à liberdade, à alegria de viver, à prosperidade e ao uso de oráculos como baralho e leitura de mãos para orientar e abrir caminhos.
Dama da Noite: É a guardiã dos mistérios da noite. Trabalha com a sedução, o encanto, mas também com a proteção contra os perigos e as energias densas que circulam no escuro.
O nome simbólico, como "das Almas", "do Cruzeiro", "da Calunga", "das Matas", indica o campo de força principal onde aquela Pombagira atua, sua hierarquia e a vibração do Orixá que a rege. Entender isso é perceber a complexidade e a organização perfeita do mundo espiritual
Salve a Força que nos Liberta!
Depois dessa nossa conversa, espero que a imagem de Pombagira na sua mente tenha mudado. Que o medo e o preconceito tenham dado lugar ao respeito e à admiração. Pombagira não é demônio, não é prostituta, não é "fazedora de amarração".
Pombagira é um mistério sagrado da Umbanda. É a força do desejo que nos move. É o arquétipo da mulher livre e senhora de si. É a psicóloga que nos ajuda a curar as feridas da alma. É a guardiã que nos protege nas encruzilhadas da vida. É uma trabalhadora incansável da Lei Maior.
Respeitar Pombagira é respeitar o sagrado feminino em todas as suas formas. É entender que a Umbanda é uma mãe que acolhe a todos, sem julgamento. É aceitar que a nossa felicidade depende da nossa capacidade de desejar, de nos amar e de lutar pelo que queremos, com coragem e alegria.
Que o axé de Pombagira te liberte de suas próprias amarras, que fortaleça sua autoestima e que acenda em você o desejo de viver uma vida plena e feliz. Que a gargalhada dela ecoe em seu coração, quebrando todas as correntes que te prendem.
Laroyê, Pombagira! Pombagira é Mojubá!