A Umbanda é uma religião do mal ou do bem?

Raphael PH. Alves

8/1/20257 min ler

Você já ouviu por aí que Umbanda é "coisa do diabo", "macumba", ou algo do mal, né? Pois é. Essa pergunta do título não é boba, ela é fruto de muito preconceito, desinformação e, vamos ser sinceros, de um racismo religioso que vem de séculos. Meu objetivo aqui é responder essa pergunta de forma direta, sem enrolação, como se a gente estivesse tomando um café.

E a resposta curta é: Não, a Umbanda não é uma religião do mal. Pelo contrário, ela é uma religião fundamentada na prática do bem e da caridade. Agora, vamos entender o porquê.

Este texto é para você que tem essa dúvida, para você que é curioso e para você que talvez até tenha medo por causa do que ouviu. Vou usar a minha linguagem, a de quem vive isso aqui, sem formalidade, mas com muito respeito e fundamento.

O Coração da Umbanda: "A Manifestação do Espírito para a Caridade"

Para entender se algo é bom ou ruim, a gente precisa olhar para a sua essência, para o seu nascimento. A Umbanda "nasceu" oficialmente em 1908, de um jeito muito simbólico. Um jovem médium, Zélio de Moraes, estava num centro espírita kardecista quando um espírito se manifestou através dele. Esse espírito se apresentou como Caboclo das Sete Encruzilhadas. Por ser um espírito de um indígena, ele foi convidado a se retirar, pois foi considerado "atrasado" e pouco evoluído para os padrões daquele grupo.

A resposta do Caboclo foi um ato de fundação. Ele anunciou que no dia seguinte começaria uma nova religião, onde nenhum espírito, por mais humilde que fosse, seria rejeitado. Assim, a Umbanda surge como um ato de acolhimento, um porto seguro para os espíritos e as pessoas que não tinham lugar na sociedade ou em outras religiões: os indígenas, os negros escravizados, os marginalizados. A sua fundação é a própria negação do mal; é um ato de amor e inclusão.

O princípio inegociável, a frase que define a Umbanda e que foi dita pelo Caboclo naquela noite, é: "A Umbanda é a manifestação do Espírito para a Caridade". Isso não é um slogan bonito, é o alicerce. Se não há caridade, não é Umbanda. E caridade aqui significa ajuda desinteressada, amor ao próximo. É por isso que um terreiro de Umbanda de verdade não cobra por trabalhos espirituais. A sustentação financeira vem da colaboração dos próprios médiuns, de eventos, de doações voluntárias, mas nunca da dor ou do bolso de quem busca ajuda.

Os Agentes do Bem: As Linhas de Trabalho da Direita

Para realizar essa caridade, a Umbanda trabalha com a manifestação de espíritos de luz, organizados em "linhas de trabalho". As três principais, que formam a base da religião, são a personificação do bem:

  • Pretos-Velhos: São os espíritos de antigos africanos escravizados. Agora, pare e pense na força moral de quem passou por todo o sofrimento do cativeiro e voltou não para se vingar, mas para oferecer sabedoria, paciência, perdão e um ombro amigo. Eles chegam curvados pela idade e pelo peso do que viveram, fumando seu cachimbo, tomando seu café, e nos ensinam que a verdadeira força está na humildade, no amor e na capacidade de perdoar. Eles são a personificação da resiliência.

  • Caboclos: São os espíritos de indígenas. Eles representam a força, a retidão, a honra e uma profunda conexão com a natureza e suas energias de cura. Com seus brados fortes e sua postura firme, eles nos ensinam a ter coragem, a lutar pelo que é justo e a buscar o conhecimento nas coisas simples da vida, nas matas, nas cachoeiras. Eles são a energia da ação correta e do saber ancestral.

  • Crianças (Erês): Representam a pureza, a alegria e a esperança. Eles se manifestam com a energia das crianças, comendo doces, brincando e rindo. Mas não se engane com a aparência. Eles trabalham com uma energia tão pura que são capazes de quebrar as negatividades mais densas com sua simplicidade e sinceridade. Eles nos lembram que a vida também precisa ser leve e que a fé mais poderosa é a fé genuína de uma criança.

A própria estrutura da Umbanda, com sua origem inclusiva e suas principais linhas de trabalho, é uma manifestação do "bem". Ela foi criada para reparar uma injustiça (a exclusão) e opera através de arquétipos que representam as mais altas virtudes humanas.

Mas e o "Diabo"? Desmistificando Exu e Pombagira de uma vez por todas

Ok, tudo muito bonito, mas e Exu? E a Pombagira? É aqui que o medo mora e a desinformação faz a festa. A associação de Exu com o diabo cristão é a maior fake news da história das religiões no Brasil. Essa confusão não foi por acaso; ela nasceu do racismo religioso que, desde a colonização, tentou demonizar tudo que era de origem africana para impor sua própria crença. Vamos separar o joio do trigo.

Quem é Exu, na real?

  • Não é o Diabo: Primeiro, a Umbanda é monoteísta. Acreditamos em um único Deus, chamado Olorum (ou Zambi, ou Tupã). Os Orixás, como Exu, não são deuses concorrentes, mas sim manifestações, qualidades ou mistérios desse Deus único, assim como os anjos e arcanjos são para outras religiões. Exu é um agente da Lei Divina.

  • O Guardião: Pense em Exu como a "polícia de choque" do astral. Ele é o guardião dos terreiros, dos médiuns e dos caminhos. É ele quem lida com o "lixo" energético, com os espíritos desequilibrados (obsessores) e com as energias negativas que são enviadas contra nós. Ele não é o mal; ele é quem combate o mal e mantém a ordem. Sua energia é a da vitalidade, da comunicação, da ação. Sem Exu, nada se movimenta, nada acontece. Ele é a força que abre os caminhos.

  • Neutro por Natureza: Exu é neutro. Ele é como o fogo: pode cozinhar seu alimento ou queimar sua casa. A energia dele assume a polaridade de quem o ativa. Um Exu de Lei, que trabalha na Umbanda, está a serviço do bem e da justiça. Se uma pessoa mal-intencionada usa o nome de Exu para fazer o mal, a responsabilidade é inteiramente da pessoa, que responderá pela Lei de Causa e Efeito. O guia de Lei simplesmente se afastará de um médium com más intenções.

  • Por que o marafo e o charuto? Não são vícios. São ferramentas magísticas. A fumaça do charuto é usada para limpeza energética (defumação), desagregando larvas astrais. O álcool da cachaça (marafo) é um elemento volátil usado para quebrar energias densas no plano astral. A entidade não fica "bêbada"; ela manipula a contraparte etérea desses elementos.

E a Pombagira, a "mulher do diabo"?

  • Força Feminina: A Pombagira é a manifestação do poder feminino livre e sem amarras. Ela quebra tabus. Ela representa o desejo, a vontade, a sensualidade e a independência. Numa sociedade que por séculos reprimiu as mulheres, a Pombagira surge como um arquétipo de libertação, dona de si e de seus caminhos.

  • Não é Prostituta: A associação dela com a prostituição é mais um preconceito machista. Ela é a guardiã que entende as dores da alma feminina (e masculina também), que ajuda em questões de autoestima, relacionamentos e quebra de amarras emocionais. Ela é como uma psicóloga do astral, que fala a verdade sem rodeios para te ajudar a se libertar.

  • Agente da Lei: Assim como Exu, ela é uma agente da Lei Divina. Atua no campo do desejo e das emoções, esgotando os desequilíbrios e nos ajudando a lidar com nossas paixões de forma saudável e construtiva.

A ideia de uma batalha entre "bem" e "mal" é uma visão importada do cristianismo que não se encaixa na Umbanda. As entidades da "Direita" (Caboclos, Pretos-Velhos) têm funções construtivas: cura, conselho, doutrina. As entidades da "Esquerda" (Exus, Pombagiras) têm funções de desagregação e ordenação: quebrar magias negativas, conter espíritos desequilibrados, esgotar vícios. Ambas são essenciais para o equilíbrio e a evolução. A Esquerda não é má; ela é a equipe de demolição que limpa o terreno para que os engenheiros da Direita possam construir um novo prédio.

De Onde Vem a Fama de "Coisa do Mal"?

Se a Umbanda é tudo isso, por que tanta gente ainda tem medo ou acha que é do mal? As razões são históricas e sociais.

  • Racismo Religioso: A principal raiz é o racismo estrutural. As religiões de matriz africana e indígena foram sistematicamente demonizadas desde a colonização como uma forma de controle e opressão cultural. Associar seus deuses e espíritos ao diabo cristão era uma estratégia para invalidar a fé e a cultura dos povos escravizados e originários.

  • Confusão com Outras Práticas: Muita gente coloca tudo no mesmo saco. A Umbanda é frequentemente confundida com o Candomblé (que são religiões irmãs, mas distintas) e, principalmente, com a Quimbanda ou magia negra. A Umbanda, em seu fundamento, não pratica sacrifício animal. A Quimbanda é outra religião, com outros fundamentos, que pode incluir essa prática. A Umbanda também não pratica "magia negra" ou trabalhos para prejudicar os outros. Quem faz isso não é umbandista; é um charlatão ou mago-negro usando o nome da religião indevidamente.

  • Maus Praticantes: Como em toda e qualquer religião, existem pessoas mal-intencionadas que usam o nome da Umbanda para enganar e explorar os outros. Cobram por trabalhos, prometem "amarrações amorosas", ameaçam... Isso é charlatanismo e vai contra o princípio número um da Umbanda: a caridade. As ações de um indivíduo desonesto não definem a essência de uma fé inteira.

Então, Bem ou Mal? A Resposta Está na Ação

A Umbanda é uma ferramenta poderosa de conexão com o sagrado e de evolução espiritual. Como toda ferramenta, seu uso define se o resultado será construtivo ou destrutivo. A religião, em sua essência, seus fundamentos, seus guias de Lei e seus Orixás, é uma força para o Bem. Ela nos oferece um caminho de luz, amor e caridade.

O "mal" que se associa à Umbanda quase sempre vem do fator humano: do preconceito de quem está de fora, ou da má-fé de quem está dentro e desvirtua seus princípios. A responsabilidade final é sempre do indivíduo e de seu livre-arbítrio. A Umbanda nos chama à "reforma íntima", a olhar para dentro e nos tornarmos pessoas melhores, corrigindo nossas próprias falhas em vez de apontar o dedo para os outros.

A Umbanda é uma religião de portas abertas. Ela não pergunta quem você é, de onde você vem ou no que você acreditava antes. Ela simplesmente te acolhe e oferece ajuda. Se isso é ser do mal, então talvez a gente precise rever nossos conceitos sobre o que é o bem. A Umbanda é amor, é fé, é conhecimento, é justiça, é lei, é evolução e é geração de vida. A Umbanda é do bem.

Axé!