Quem são os Erês na Umbanda

Raphael PH. Alves

8/26/20256 min ler

Sabe aquela energia que chega no terreiro e muda tudo? Que parece que liga um interruptor de alegria e faz até o mais carrancudo dar um sorriso? Então, bora falar da Linha das Crianças, dos Erês, da Ibejada. E pode esquecer aquela ideia de que é só festa com guaraná e doce. A parada aqui é muito mais profunda.

Os Erês são uma das linhas mais poderosas e, sinceramente, mais mal compreendidas da Umbanda. O trabalho deles é uma forma de cura espiritual tão profunda que usa a alegria, a pureza e a simplicidade como suas principais ferramentas. Este texto vai quebrar alguns mitos e mostrar a verdadeira força espiritual que essa molecada traz. Essa linha é a personificação da mais pura caridade, aquele princípio fundamental que o Caboclo das Sete Encruzilhadas anunciou quando trouxe a Umbanda ao mundo: a manifestação do espírito para a caridade. É a base de tudo, e os Erês são a base da alegria que cura.

Quem São os Erês de Verdade?

Primeiro, vamos tirar o elefante da sala. A ideia de que Erês são espíritos de crianças que morreram de forma trágica é um engano. É uma visão que até entendo, por ser mais fácil de assimilar, mas não é a verdade teológica da Umbanda. A real é que os Erês são Encantados.

Mas o que diabos é um Encantado? Pensa assim: são espíritos puros, elementais, que nunca tiveram uma vida humana. Eles não nasceram, não morreram, não reencarnaram como nós. São energias primordiais, ligadas ao início da criação, que representam o potencial puro, a renovação e a inocência que ainda não foi corrompida pelas dores e complexidades da vida na Terra.

Dentro da teologia da Umbanda, que é uma religião monoteísta, acreditamos em um único Deus Criador, que chamamos de Olorum ou Zambi. Olorum não se manifesta diretamente, mas expressa suas qualidades e mistérios através dos Orixás, que não são deuses separados, mas sim divindades, manifestações ou "qualidades de Deus". Os Erês, nesse esquema, são as forças elementais puríssimas, diretamente ligadas à vibração criadora desses Orixás. Eles são o "começo" da energia do Orixá se manifestando de forma individualizada.

Entender isso é mais do que um detalhe teológico; é uma forma de defesa espiritual. A Umbanda, infelizmente, sofre um preconceito absurdo, muitas vezes enraizado em racismo e ignorância pura e simples. Vemos igrejas neopentecostais promovendo uma "batalha espiritual" na qual nossas entidades são taxadas de demônios, e o termo "macumba" é usado de forma pejorativa para nos associar ao mal. Essa narrativa precisa de um vilão. Mas como você consegue encaixar a pureza absoluta, a alegria contagiante e a inocência de um Erê nesse papel? Não consegue. A própria existência da Linha das Crianças quebra essa lógica de demonização. Ela prova que a cosmologia da Umbanda é complexa e abraça forças de luz e pureza absolutas, algo que é fundamentalmente incompatível com os estereótipos de ódio que tentam nos impor.

O Trabalho Espiritual por Trás das Brincadeiras

Não se engane com a bagunça, com os pulos e com os pedidos de doce. O trabalho de um Erê é coisa séria e acontece em níveis muito profundos.

Quebra de Energias Densas

A vibração de um Erê é altíssima. A alegria, a risada, a pureza deles funcionam como um solvente para energias pesadas. Sabe aquela tristeza, aquele orgulho, aquela raiva, aquela rigidez que a gente carrega? A energia de um Erê passa por cima disso tudo. É como tentar segurar fumaça com as mãos; a energia deles simplesmente atravessa qualquer barreira que nosso ego ou nossa dor constrói. Eles não pedem licença, eles chegam e limpam, transformando o ambiente e a aura de quem está ali.

Cura Emocional e a "Reforma Íntima" na Raiz

Aqui está uma das maiores magias dos Erês: eles têm acesso direto à nossa "criança interior". Eles se conectam com os traumas, medos e bloqueios que formamos lá na infância e que, sem a gente perceber, ditam nosso comportamento de adulto. Isso está diretamente ligado ao conceito de Reforma Íntima. Nós, adultos, tentamos fazer nossa reforma moral através do estudo, da razão, do esforço consciente. É um caminho válido, mas muitas vezes lento e difícil. O Erê faz diferente. Ele vai na raiz do problema, na ferida emocional original, e começa a cura por lá.

A sociedade moderna nos cobra seriedade, cinismo e repressão emocional para sobreviver. Criamos defesas, intelectualizamos sentimentos e nos fechamos. A energia de um Erê não negocia com essas defesas. Ela fala diretamente com o coração, com aquela parte nossa que ainda é pura e vulnerável. Uma Gira de Erê, portanto, é uma das sessões de terapia espiritual mais potentes que existem, cumprindo a missão da Umbanda de praticar a caridade – nesse caso, a caridade da cura emocional.

A Verdade Sem Filtro

Um Erê não tem papas na língua, mas a verdade dele nunca vem com a intenção de ferir. Ela vem com a simplicidade de uma criança que não entende por que os adultos complicam tanto as coisas. Um Erê pode chegar para um consulente e perguntar: "Tio, por que você briga com a tia se você gosta dela?". Uma pergunta simples que desmonta anos de justificativas, orgulho e desculpas. Essa honestidade desarmante força uma autoanálise profunda, sem o peso do julgamento.

A Ligação com os Orixás

Assim como os Exus, que carregam em seus nomes e formas de trabalhar a regência de um Orixá, os Erês também são sustentados por essa energia. O Orixá regente define o "jeitinho" de cada um, sua personalidade e seu campo de atuação principal.

Mas tem um detalhe importante: os Erês manifestam o arquétipo mais puro, essencial e sem filtros do seu Orixá regente. Eles são a ideia original daquela energia. Por exemplo, um Caboclo de Ogum manifesta a lei e a ordem de Ogum através da maturidade, da estratégia e da experiência de um guerreiro. Já um Erê de Ogum manifesta o princípio central de Ogum – o de "ir para a frente" e "quebrar barreiras" – com uma energia de pura impulsão, teimosia e uma brincadeira que não para. Eles são a verdade nua e crua da vibração do Orixá, e é por isso que são mensageiros tão poderosos.

Erês e a Vibração dos Orixás

A Gira de Erê, as Oferendas e a Saudação

Uma Gira de Erê é uma experiência sensorial completa. O som dos pontos cantados alegres, o cheiro dos doces misturado ao da defumação, a visão dos médiuns pulando, brincando e rindo, e a sensação de leveza que toma conta de todo o terreiro.

As oferendas, como guaraná, balas, pirulitos e bolos, são um capítulo à parte. É fundamental entender que o propósito de uma oferenda na Umbanda é a troca de axé (energia vital), e não alimentar o espírito literalmente. Então, qual é o

axé de um doce? É a energia da "doçura", da alegria, do prazer. O açúcar, sendo um cristal, é um condensador e amplificador de energia natural. Quando um Erê "pede um doce", ele não está sendo apenas uma criança mimada. Ele está pedindo uma ferramenta mágica. Ele usa aquela energia concentrada de "doçura" para aplicar na vida do consulente: para adoçar uma situação amarga, acalmar um coração partido, atrair um amor ou suavizar uma personalidade muito rígida. É a mais pura magia de Umbanda em ação.

A saudação que ecoa no terreiro é "Oni Beijada!". "Oni" pode ser traduzido do iorubá como "ele é" ou "dono de", e "Ibejada" é o coletivo dos Erês. Então, é uma reverência, um grito de alegria que significa "Ele pertence à Ibejada!" ou, de forma mais simples, "Salve a Ibejada!".

Sobre a incorporação, é uma parceria, uma sintonia. Quando o Erê "chega", o médium sente uma leveza, uma vontade de rir, de pular. A voz pode afinar, os gestos se tornam infantis. Não é uma possessão, onde o espírito toma o corpo à força. É uma aliança sagrada, uma conexão de chakras em que a entidade trabalha através do médium para a caridade.

No fim das contas, a maior lição que os Erês nos dão é que a gente se leva a sério demais. A gente complica o que é simples e se afoga em problemas que, vistos com a pureza de uma criança, teriam soluções óbvias. Eles chegam para nos lembrar que a cura, muitas vezes, está em um sorriso sincero, em um abraço apertado, em permitir que a nossa criança interior respire um pouco. Em um mundo que nos cobra seriedade e dureza o tempo todo, uma Gira de Erê é um ato de revolução.

E talvez seja por isso que eles são tão importantes. Numa religião que tanto sofre com o preconceito e a ignorância, que é chamada de "coisa do demônio" por quem não a conhece , a risada de um Erê é o nosso maior ato de resistência. É a prova viva de que a Umbanda é amor, é vida, é alegria.

Oni Beijada!