Quem são os Boiadeiros na Umbanda

Raphael PH. Alves

8/28/20258 min ler

Jetruá, Boiadeiro! Vamos começar com a saudação deles, porque falar da Linha dos Boiadeiros é chamar uma energia de firmeza, de pé no chão, de uma força que não se abala. Se você já viu um Boiadeiro chegar em terra, sabe do que eu tô falando. A energia é intensa, o corpo do médium treme, a presença é forte, quase intimidadora. E é aí que mora o primeiro grande entendimento que a gente precisa ter sobre eles.

Muitos olham para os Boiadeiros e veem entidades "carrancudas", sisudas, de poucas palavras. E não estão errados na observação, mas estão errados na interpretação. Essa seriedade, essa postura quase austera, não é falta de caridade ou de amor. Pelo contrário. É a armadura necessária para o tipo de trabalho que eles fazem. Pensa comigo: a principal função deles é lidar com espíritos endurecidos, obsessores, quiumbas, e toda sorte de energia desequilibrada. Esse tipo de trabalho não se faz com tapinha nas costas. Exige autoridade, uma energia impositiva que comanda respeito e impõe a Lei Divina.

Essa "força bruta" é, na verdade, uma ferramenta de trabalho. Eles são rigorosos e demandadores quando estão de frente com espíritos trevosos, mas são incrivelmente doces e protetores com quem eles vêm ajudar. A sisudez é para fora, para o combate. O coração gigante, a benevolência e a generosidade são para dentro, para o consulente que busca amparo. Essa dualidade não é uma contradição, é uma especialização. Eles são o muro intransponível contra o mal e, ao mesmo tempo, o porto seguro para quem precisa de ajuda. Entender isso é o primeiro passo para honrar e compreender a grandeza dessa linha de trabalho.

O Arquétipo do Sertão na Aruanda: Quem é o Boiadeiro?

Quando falamos em "Boiadeiro", estamos falando de uma linha de trabalho, uma falange de espíritos que se apresentam na Umbanda sob um arquétipo muito específico e poderoso: o do homem do sertão. Eles vestem a "roupagem" espiritual do peão, do vaqueiro, do laçador, do tocador de gado, do tropeiro – homens que viveram a lida dura do campo, principalmente entre os séculos XVIII e XIX. São os espíritos que, em suas vidas encarnadas, conheceram a poeira da estrada, o sol forte, as noites ao relento e a força necessária para conduzir boiadas por longas e perigosas distâncias.

Esse arquétipo não é por acaso. Ele representa a própria essência da formação do povo brasileiro. O Boiadeiro é o "caboclo sertanejo", muitas vezes o mestiço, filho do branco com o índio, do índio com o negro. Ele carrega em si a resiliência, a persistência, a fé simples e inabalável, e a sabedoria que só a vida dura ensina. Eles representam nossos costumes, nossas crendices, nossa capacidade de enfrentar as adversidades com coragem e determinação.

Mas por que espíritos escolheriam justamente essa forma para trabalhar? Porque a vida de um boiadeiro na terra foi o treinamento perfeito para a sua missão no astral. A habilidade de guiar um rebanho por tempestades e caminhos difíceis é a mesma que eles usam para guiar almas perdidas. O conhecimento para encontrar um boi desgarrado é o mesmo que usam para resgatar um espírito obsessor. A coragem para enfrentar onças e bandidos nas estradas é a mesma que eles têm para enfrentar as forças das trevas. A vida deles foi uma escola de formação para se tornarem os grandes ordenadores e condutores de almas que são hoje.

A Lida no Astral: O Trabalho Incansável de "Tocar a Boiada"

A principal missão dos Boiadeiros, o seu trabalho mais conhecido, é o de recolher e conduzir espíritos que se perderam no caminho da evolução. Eles são especialistas em lidar com eguns (espíritos desencarnados), quiumbas (espíritos trevosos), obsessores e zombeteiros. Eles são, como se diz no terreiro, "pegadores de egun" por excelência. Eles vão atrás daquele espírito que está perturbando uma família, causando desordem em uma casa, e o conduzem para o seu devido lugar na Criação, da mesma forma que um peão experiente vai buscar o boi que se afastou da manada.

É aqui que a gente mergulha no simbolismo mais profundo dessa linha. Na linguagem dos Boiadeiros, o "boi" não é apenas um espírito desencarnado. O "boi", meu amigo, é o próprio ser humano em desequilíbrio, seja ele encarnado ou não. Somos nós, quando nos rebelamos contra a Lei Divina, quando nos perdemos em vícios, em tristezas, em raivas, quando não aceitamos os "cabrestos" ou os limites que a vida nos impõe. Nós somos o "boi desgarrado do rebanho".

Quando um Boiadeiro trabalha para um consulente, ele não está apenas limpando o campo astral da pessoa. Ele está, muitas vezes, "laçando" as partes daquela pessoa que se perderam. Ele está ajudando a resgatar a nossa força de vontade que se foi, a nossa fé que se abalou, a nossa alegria que se escondeu. O trabalho do Boiadeiro é um processo profundo de reintegração espiritual e psicológica. Ele nos ajuda a juntar os nossos pedaços, a reunir as partes da nossa alma que se dispersaram no caos da vida, e nos coloca de volta no nosso próprio caminho, na nossa "boiada" evolutiva. É uma forma de terapia espiritual direta, focada e incrivelmente eficaz.

Além desse trabalho de recondução, eles são agentes poderosíssimos de limpeza energética. Com seus laços e chicotes, eles quebram demandas, cortam magias negativas e descarregam as energias pesadas que se acumulam nos médiuns, nos consulentes e no próprio ambiente do terreiro.

As Ferramentas de Poder: A Magia do Laço e do Chicote

É fundamental entender que nada na Umbanda é por acaso. As ferramentas que os guias usam não são enfeites, são "instrumentos magísticos" carregados de axé e fundamento. Com os Boiadeiros, isso é claríssimo no uso do laço e do chicote.

O Laço

O laço do Boiadeiro é uma ferramenta de contenção, de agrupamento e de ordem. Quando um Boiadeiro gira o seu laço no ar, ele não está apenas fazendo um movimento bonito. Ele está criando, no plano astral, "ondas espiraladas do Tempo" que têm a capacidade de recolher espíritos perdidos e de desfazer energias densas que se acumularam ali. O laço impõe um limite, um círculo de força que captura e contém o caos. Essa ação é uma manifestação direta da energia de Pai Ogum, o Orixá da Lei, da Ordem e dos Caminhos. Ogum é quem estabelece as regras e os limites, e o laço do Boiadeiro é a ferramenta que aplica essa Lei no campo de trabalho. E o alcance desse laço é algo impressionante. Um Boiadeiro pode estar incorporado no terreiro, olhar para você e, ao jogar o laço, essa ferramenta astral vai até a sua casa para buscar uma energia ou um espírito que está lá te perturbando, trazendo-o amarrado para ser doutrinado.

O Chicote

Já o chicote, que pode assustar os desavisados, não é um instrumento de punição. É uma ferramenta de direcionamento e movimento. Quando um Boiadeiro estala o chicote, o som e a onda energética que ele produz são uma ordem de comando no astral. Ele está usando o chicote para movimentar energias estagnadas, para ordenar que espíritos se retirem, para quebrar campos de força negativos. Essa ação é uma manifestação pura da força de Mãe Iansã (Oyá), a Senhora dos Ventos, do Movimento e dos Eguns. É ela quem dá aos Boiadeiros a autoridade para comandar os espíritos, e o chicote é o canal pelo qual essa autoridade se manifesta. O estalo do chicote é o som do vento de Iansã colocando ordem no caos.

Além dessas duas ferramentas principais, eles também utilizam o berrante, cujo som no astral agrega e chama os espíritos, o chapéu de couro, que funciona como um escudo protetor para o chakra coronário do médium, e o lenço, que também é um elemento de proteção e identificação.

Sob a Lei de Quem Eles Vêm? A Regência de Iansã e Ogum

Nenhum guia na Umbanda trabalha sozinho. Todos são parte de uma hierarquia espiritual e atuam sob a ordem e a sustentação dos Sagrados Orixás. Os Boiadeiros são verdadeiros "soldados dedicados" da Lei Maior, e sua principal regência vem de dois Orixás de força, movimento e lei: Iansã e Ogum.

É Iansã, a Senhora dos Eguns, a Rainha dos Ventos e das Tempestades, quem concede aos Boiadeiros a autoridade e o poder para lidar com os espíritos desencarnados. A capacidade de "laçar" e comandar os eguns é um axé, uma permissão sagrada, dada por ela. É a força de Iansã que eles usam para movimentar o que está parado e direcionar o que está perdido.

Ao lado dela, vem Pai Ogum, o Senhor dos Caminhos, da Lei e da Ordem. Ogum lhes dá a força do guerreiro, a determinação inabalável, a coragem para enfrentar qualquer demanda e a retidão para aplicar a Lei Divina sem hesitar. Quando um Boiadeiro abre os caminhos de uma pessoa, ele o faz sob a licença de Ogum, o dono de todas as estradas.

Embora essa seja a regência principal, a Umbanda é rica e complexa. Por isso, também encontramos Boiadeiros que trabalham na vibração de Pai Oxóssi, o que os aproxima muito da energia dos Caboclos das Matas. Outros atuam sob a regência de Oyá-Tempo (Logunan), o Orixá do Tempo e da Fé, o que lhes dá um poder imenso sobre as memórias e os registros do tempo, ajudando a desfazer amarras do passado.

A Chegada do Povo do Laço: Firma o Ponto e Sente a Força!

A chegada de um Boiadeiro no terreiro é inconfundível. A incorporação costuma ser ágil e forte. Eles se movimentam como se estivessem de fato laçando um boi, girando os braços, batendo os pés com firmeza no chão. Seus brados, os gritos altos e fortes que eles dão, não são aleatórios. São verdadeiros mantras de poder, ordens diretas no plano espiritual para que espíritos desordeiros se afastem e para que as energias negativas se quebrem.

A sua forma de falar reflete o seu arquétipo: são diretos, simples, de "poucas palavras, mas de muitas ações". Eles não gostam de rodeios e vão direto ao ponto, pois o foco deles é a resolução, a ação. Eles nos ensinam que cada gesto deve usar a menor energia possível para o melhor resultado, e que se falhar, é preciso tentar de novo, sem nunca desistir.

Para saudá-los e demonstrar nosso respeito, usamos palavras que evocam sua força. A saudação mais comum é "Jetruá, Boiadeiro!" ou simplesmente "Xetruá!". "Jetruá" pode ser traduzido como "Salve aquele que tem o braço forte", um reconhecimento direto da sua capacidade de trabalho e da sua força. Outras saudações como "Xetro Marrumbaxêtro" também são ouvidas nos terreiros.

Tabela Resumo: A Linha dos Boiadeiros em um Olhar

Para facilitar a compreensão e fixar as informações mais importantes, aqui vai um resumo rápido sobre essa linha de trabalho maravilhosa.

Ao final dessa nossa conversa, espero que tenha ficado claro o tamanho da força e da importância da Linha dos Boiadeiros. Eles nos trazem lições espirituais profundas, ensinadas com a simplicidade e a objetividade do homem do campo. Com eles, a gente aprende sobre determinação, sobre a força que o trabalho tem, sobre a coragem de não desistir e sobre a dignidade que existe na vida simples.

Aquela força que, à primeira vista, pode parecer bruta ou até assustadora, é, na verdade, uma das mais puras manifestações do amor e da proteção divina. Eles são os guardiões firmes, os sentinelas incansáveis nas fronteiras do astral, garantindo que a "boiada" de almas, encarnadas e desencarnadas, siga sua jornada em segurança em direção à Luz Maior.

Que a gente possa sempre olhar para um Boiadeiro com o respeito que ele merece, entendendo que sua seriedade é lei, seu laço é ordem e seu chicote é movimento. Que a força deles nos inspire a sermos mais firmes em nossos propósitos e mais corajosos diante dos desafios da vida.

Jetruá, Boiadeiro! Xetruá!